O desejo paradoxal de ter e querer
Crítica da peça Fã-Clube, de Keli Freitas, com a
Cia Físico de Teatro
Cia Físico de Teatro
A tenista Monica Seles, então número um do
ranking mundial, foi esfaqueada durante uma partida das quartas-de-final do
Torneio de Hamburgo. O autor do atentado, o alemão Günter Parche, foi durante
anos obcecado pela tenista alemã Steffi Graf, principal concorrente de Seles. A
obsessão de Günter por Graff começou em 1985, quando a viu em um programa de
televisão. A partir de então, passou a escrever cartas para a tenista e para
sua mãe. Chegou a mandar dinheiro, forrar as paredes de seu quarto com fotos gigantescas
da moça e não perdia nenhum de seus jogos. Ela era a criatura de seus sonhos,
com olhos de diamantes e cabelos de seda brilhantes, conforme afirmou após o
atentado contra Mônica Seles. Ele cometeu o ataque com o objetivo de fazer com
que seu objeto de adoração voltasse a figurar no topo do ranking mundial. O
plano foi arquitetado quando a tenista foi derrotada por Monica Seles em 1990,
durante o German Open.
8 de dezembro de 1980:
O americano Mark David Chapman cometeu o crime
que chocou o mundo e que o tornou tragicamente famoso. Ele assassinou, com
cinco tiros à queima-roupa o músico inglês e ex-Beatle John Lennon, em Nova
York, na entrada do Edifício Dakota, local onde o músico morava. Horas antes do
crime, Lennon havia autografado para Chapman uma cópia de seu então recém
lançado álbum Double Fantasy. Mark tinha o costume de visitar o prédio de John
e perguntava, para funcionários e outros moradores, sobre o ídolo e dizia-se um
grande fã do artista. O crime ocorreu porque Chapman sentiu-se traído por seu
ídolo ao entender que o cantor não era na vida real o mesmo que parecia nos
palcos e que proclamava por meio de suas músicas.
Nos exemplos acima, percebemos que a relação
entre uma estrela e seus fãs pode ultrapassar os limites considerados dentro da
normalidade e transformar-se em um jogo delicado, arriscado e perigoso para
ambas as partes. Quase todos os perseguidores de pessoas famosas se iludem e
idealizam a possibilidade de se aproximar de seu ídolo, colocando sobre ele uma
série de projeções. A maioria dos stalkers de famosos, de certa forma “vampiros
de identidades”, quer estar perto o suficiente para apropriar-se de
características que os atraem.
Esse é o mote para o mais recente trabalho da
Cia Físico de Tetro. Investigar e discutir em cena a delicada afinidade
existente entre o fã e o ídolo, o ser e o ter e a degradação de valores éticos
e morais oriundos desta relação. A peça Fã-Clube cumpre sua
primeira temporada no Mezanino do Espaço SESC em Copacabana até o próximo dia
30 de setembro. Nesta nova empreitada, a Cia Físico de Teatro apresenta a tênue
relação de dois homens obcecados por uma atriz desconhecida. Os dois demonstram
um desejo exacerbado de possuí-la, de tê-la sobre seu domínios. Ela não passa
de um objeto de desejo para aqueles dois homens que não medem esforços para se
apossarem de sua musa. A relação que se desenvolve entre os três torna-se
irreversível: a outrora vítima vai aos poucos se entregando ao seu destino e
acaba desenvolvendo uma certa empatia por seus algozes. Em determinado momento
da peça, não podemos mais afirmar se eles realmente são culpados, quem são os
loucos, quem é a vítima, quem está mentindo para quem e se tudo que observamos
é realmente real naquela instância ficcional, ou se todo o jogo cênico
apresentado não passa de um fluxo imaginativo das personagens.
Fã-Clube é o texto de estreia da atriz Keli Freitas que assumiu a
dramaturgia do grupo. Mais uma vez a Cia Físico de Teatro repete a fórmula
utilizada em seu espetáculo anterior, Savana Glacial. Tanto em Fã-Clube,
como em Savana Glacial, um autor foi convidado para criar, em um
processo colaborativo com os três atores da peça, o texto do espetáculo, a
partir de um argumento dramatúrgico pré-definido.
Keli criou uma história recheada de boas
referências que circulam entre o cinema, o teatro e o universo dos quadrinhos.
Podemos claramente perceber uma boa dose do cineasta Quentin Tarantino, de
Samuel Beckett e de Garth Ennis (quadrinista norte-americano responsável pela
série de Graphic Novels, Preacher) neste espetáculo.
Cito essas três fontes por identificar no texto
de Keli Freitas certos elementos que remetem a estes artistas.
Do cineasta Quentin Tarantino, podemos encontrar
pontos de contato na forma narrativa. Assim como em Pulp Fiction, Fã-Clube é
marcado pela não-linearidade dos acontecimentos, recurso bastante explorado no
Cinema e amplamente utilizado em montagens teatrais contemporâneas. Entretanto,
aqui essa forma narrativa funciona perfeitamente, pois esse recurso completa os
espaços abertos para a reflexão sobre a problematização das instâncias do real
e do ficcional, da memória, do certo ou do errado e da vontade de se possuir
aquilo que não está ao alcance das mãos.
Do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, Keli
Freitas toma emprestado a atemporalidade para situar sua ação dramatúrgica.
Assim como em Fim de jogo, não temos em Fã-Clube um
lugar e um tempo definidos. Isso fica a cargo da imaginação do espectador, que
pode muito bem situar os acontecimentos da cena em uma favela do Rio de Janeiro
ou no deserto do Texas, assim como os fatos da peça podem ter ocorrido há dez
anos ou vão acontecer daqui a dez anos. Esta cronotopia indefinida contribui
ainda mais para o clima de suspensão, dos interditos ao qual o espetáculo se submete.
Outro ponto que podemos salientar do texto de Keli Freitas é a opção por não
dar nome às suas personagens. Não há a necessidade de identificarmos as
personagens por nomes. As informações que o público absorve já são o suficiente
para adentrarmos nos conflitos das três personagens em cena. Esse recurso de
despersonificação não depõe em nada contra o espetáculo, ao contrário, com essa
escolha a autora ganha em artificialidade e em força de representação. As
personalidades de cada um são descortinadas aos nossos olhos, com bastante
nitidez. Os conflitos se estabelecem num jogo de decifração dramatúrgica e
cênica bem executada pelos três atores em cena.
Em relação à construção das personagens é
possível observar certas similaridades com as figuras criadas por Garth Ennis.
Assim como faz o quadrinista americano – que constrói com clareza e bastante
definição seus tipos, no que diz respeito aos arquétipos psicológicos –, emFã-Clube,
os papéis exercidos pelas figuras no palco são bem definidos e dados ao público.
Não há espaço para a dúvida em relação ao caráter e as intenções das
personagens. A figura dos sequestradores, por exemplo: enquanto um é
silencioso, o outro é extremamente comunicativo e, embora seja claro que ambos
são violentos, podemos perceber momentos de afeto em um e rancor demasiado no
outro. São contrapontos que se complementam. Por outro lado, a atriz (Camila
Gama) procura se beneficiar das características de seus antagonistas para virar
o jogo em seu favor ao mesmo passo que ela se perde entre momentos de lucidez e
loucura, por não saber exatamente como lidar com a situação na qual está
inserida. Os dois sequestradores (Igor Angelkorte e Renato Livera) se mostram
sem escrúpulos e querem a todo custo aprisionar e manter seu objeto de desejo. O
grande objetivo dela é se livrar de seus algozes e o deles, de conservá-la. No
triângulo concebido entre eles, neste jogo de gato e rato, é que residem os
momentos de maior tensão da peça.
Outro ponto de destaque em Fã-Clube é
que, apesar de não haver em nenhum momento do espetáculo a interação com o
público, este é convidado a questionar o que ali é verdadeiro. O que é real e o
que é ficção? Essas indagações são deixadas para serem respondidas pelo
espectador, que é abarcado pelas instâncias da memória e da ficção que estão o
tempo inteiro suspensas, confundindo-se e se entrelaçando. Não se pode tirar
conclusões definitivas. A única certeza é a já citada acima, de que entre o
real e o ficcional o limite é tênue e suspenso.
A cenografia de André Sanches é bastante
precisa, com os objetos cênicos distribuídos de forma desarmônica sobre o palco
com intuito de criar a ilusão necessária na qual Fã-Clube se
escora. A ideia de um espaço fechado e claustrofóbico, que se situa em um lugar
afastado e inóspito, é bem executada e colabora para a composição das cenas.
Além disso, o espaço é concebido para interagir com os atores e não apenas para
ilustrar um ambiente. O palco composto por placas de ferro, latões de óleo de
diversos formatos e tamanhos, ferramentas, luminárias que caem quase até o
chão, dispersos por todo o espaço que nos remete a um velho galpão, dão uma a
exata noção de um ambiente inóspito e desconhecido. A iluminação, de Renato
Machado, que procura valorizar os tons sombrios e azulados que evocam um lugar
onde habitam os dois bandidos e que serve de cativeiro para a atriz
sequestrada, trabalha em harmonia com a cenografia. Neste sentido, a luz e a
fumaça utilizadas na peça são os dois elementos responsáveis por transportar a
plateia para esse universo tétrico, degradado e dilapidado de calor humano. A
sensação que temos é a de que os dias e as noites se sucedem lentamente, que
não há passagem de tempo perceptível. A trama ocorre sempre naquele ambiente
enclausurado e opressivo. A trilha sonora, originalmente criada para este
espetáculo por Jamba, também é outro elemento que converge para essa atmosfera.
Os efeitos sonoros – mesmo os menos perceptíveis – contribuem para sublinhar a
tensão em cena e pontuam o clima de mistério, operando uma desestabilização da
pulsão das personagens em relação e diálogo.
O apontamento das atuações desenvolvidas pelos
três atores em cena e pela direção de Renato Livera é de uma não-psicologização
das personagens. A opção por uma linha claramente não-naturalista aproxima os
atores do universo das histórias em quadrinhos e do Teatro do Absurdo. As
nuances de cada personalidade vão se descortinando à medida que as cenas se
seguem e podemos julgar cada um por alguma característica que se evidencia e
que os marca.
Outro fator de destaque em torno das atuações
está na artificialidade dos movimentos em cena, que ficaram a cargo da direção
de Lavínia Bizzoto. Cada gesto é bem coreografado e requer precisão matemática
para que os efeitos dramáticos se concretizem e se amplifiquem, são repetições
gestuais pensadas e estudadas à exaustão e realizados com destreza. É a
percepção de um teatro que prima para que o espectador acompanhe a história e
junte os pedaços de sua estrutura, num bom conjunto entre os atores, a
cenografia, a iluminação e a dramaturgia.
Fã-Clube é, acima de tudo, um trabalho que lida com diversas formas de
risco, seja na afinidade existente entre os atores em cena, seja na proposta
dramatúrgica de um texto original e não-convencional ou ainda pelo tempo de
duração do próprio espetáculo, que não é esgarçado. Em relação a esta última
característica, cito o professor e teórico teatral Patrice Pavis, que afirma
que no teatro, o tempo é o da medida da duração do espetáculo; é também o tempo
controlado e submetido à camisa de força da encenação com seus pontos de
referência, suas regularidades, suas repetições; tempo repetível noite após
noite, graças a uma partitura muito precisa e pouco modificável. É também o
tempo da carpintaria dramatúrgica com os seus pontos de passagem obrigatórios
(exposição, crescimento da ação, ponto culminante, queda). Esse tempo minutado
é facilmente perceptível e descritível, sobretudo nas suas relações com os
signos “visíveis” da representação. E é exatamente isso o que acontece em Fã-Clube.
Ao olharmos para este espetáculo podemos
vincular aquilo que se conta em cena à atuação, à ação do tempo e do espaço e à
ideia de uma história que vai ser desvendada e que prende a atenção dos
espectadores na iminência de um final surpreendente.
Referência bibliográfica:
PAVIS, Patrice. A análise dos
espetáculos.Tradução: Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo. Perspectiva: 2005.
P.146.
Raphael Cassou é ator,
iluminador e graduando em Teoria do Teatro pela Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro – UNIRIO.
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