CRÍTICAS TEMPORADA DE VERÃO


Crítica teatral

Temporada de verão (RJ)

Letícia Cannavale, Adassa Martins e Camila Gama em cena
Foto: divulgação

Uma pauta teatral elevada
A ótima peça “Temporada de verão” encerrou sua temporada no Teatro de Arena do Espaço Sesc em Copacabana, fazendo o público pensar. Dirigido por Renato Livera, a partir de texto de Maria Paula Leão (com colaboração de Sandro Pampanet), o espetáculo é um instigante motivo para reflexão sobre a sensibilidade humana independente do gênero. Com excelente interpretação de três grandes jovens atrizes, a peça conta a história da lutadora Fabrícia (Adassa Martins) que chega em um país distante especialmente para participar de uma entrevista sobre seu trabalho com a apresentadora Natasha (Letícia Cannavale). Na verdade, a entrevista será uma constrangedora exposição da vida pessoal da entrevistada, tendo a intérprete Penélope (Camila Gama) como mediadora. Eis aí uma bela produção do mesmo grupo responsável pelo premiado espetáculo “Savana Glacial”.

A plateia é dividida em dois setores, homens e mulheres, deixando claro desde o início que a boa parte da história será, afinal, sobre o quanto as mulheres ainda sofrem sob o jugo do homem. A entrevista de Natasha (Cannavale) com Fabrícia (Martins) acontecerá partindo de dois contextos: Fabrícia sofre no mundo olímpico, porque ela é uma mulher que nasceu em corpo de homem. Sendo uma transexual, ela depende de certificados médicos que comprovem para o comitê esportivo que ela pode lutar com outras lutadoras sem vantagens naturais. No entanto, o tempo passa e esses papéis não chegam e, enquanto isso, o assunto divide as opiniões dos torcedores e dos esportistas. Por outro lado, Natasha lidera uma equipe de profissionais que, entre outros, está organizando esse programa de entrevistas em que estamos. Reinando entre homens, sua fragilidade feminina precisa ser normalmente escondida, substituída por um tipo de defesa muitas vezes grosseira, mas quase sempre eficaz até então. Chega, porém, uma gravidez que, enquanto cresce, vai expondo a sua fragilidade que é ridicularizada pelo aumento dos cuidados que as pessoas têm sobre ela. O que Fabrícia pode ensinar para Natasha é simples: é preciso ouvir as opiniões dos outros sobre si, mas nem todos esses pontos de vista precisarão ser levados em conta. Como duas figuras aparentemente opostas, é bonito ver como, aos poucos, elas vão se aproximando. Penélope (Camila Gama) é a chave que une Fabrícia e Natasha, mas também que as desune nessa preciosa e afiada dramaturgia de Maria Paula Leitão.

Fabrícia (Adassa Martins) e Natasha (Letícia Cannavale) não falam o mesmo idioma. No texto, o encontro se dá no país da segunda, um lugar distante do Brasil. A língua desse outro país é um interessantíssimo jogo de trocas de sílabas das palavras em português, gerando sons diferentes, estranhos, mas bonitos. Cannavale e Camila Gama (Penélope) têm destacável trabalho de viabilização desse novo idioma, criando entonações realistas que são expressas com fluência admirável. As cenas exibem, de um lado, o estranhamento entre a entrevistadora e a entrevistada. De outro, a proximidade entre a entrevistadora e sua assistente e finalmente a proximidade entre a assistente e a entrevistada. A tese é nobre: os diferentes idiomas e culturas não são suficientes para impedir que os seres humanos se identifiquem em suas forças e em suas sensibilidades.

A direção de Renato Livera expõe um diálogo profícuo entre as personagens, apesar dos elementos simbólicos atrasarem o ritmo. O texto inicial, a tentativa de metáfora do aquário com a sociedade (o peixe Beta, o domínio do território) e do esqueleto com o que está para além da discussão de gênero, bem como as relações com o filme “2001 – uma odisseia no espaço” (Stanley Kubrick, 1968) são esforços em provar que os realizadores são inteligentes e têm referencias, mas que pouco contribuem com a dramaturgia em si. Adassa Martins, Letícia Cannavale e Camila Gama são intérpretes cujos níveis expressivos dos seus trabalhos são altíssimos e é nelas que se dá entre elas que está o bom de teatro de Livera em “Temporada de verão”.

Ao final, há que se fazer positivo destaque para o figurino de Bruno Perlatto aqui em mais um ótimo trabalho. Natasha e Penélope usam calças e sapatos altíssimos, expressando feminilidade e força. Fabrícia tem, no vestuário, referências orientais que dizem respeito ao seu esporte e à questão da defesa pessoal a que ela se dedica enquanto pesquisadora. No todo, o figurino dá a sua contribuição à narrativa em que há mulheres nascidas homens e tornadas femininas por intervenções médicas e nascidas mulheres, mas tornadas brutas pela sociedade preconceituosa e dura.

O título vem de uma pergunta que Natasha faz à Fabrícia. Como uma transexual esconde o pênis no verão, quando vai à praia? Para longe de uma curiosidade apenas mórbida, a questão tem em si altíssima dose de complexidade que eleva o assunto da pauta teatral carioca. Que venham novas temporadas!






Nenhum comentário:

Postar um comentário